Reumo
Este ensaio objetiva refletir, sob a perspectiva da Gestão Social, acerca da possível permanência harmoniosa de sistemas produtivos de energias renováveis em territórios brasileiros. Argumenta-se em torno do caso da energia eólica que, atualmente, protagoniza processos de sobreposições territoriais no Brasil, o que demanda uma análise crítica acerca das consequências para o desenvolvimento territorial.
A geração de energia por fonte eólica no Brasil apresentou ascensão desde a última década. Esse fortalecimento do setor ocorreu a partir da integração de políticas de incentivo às indústrias e à implantação de energias renováveis. Dois marcos históricos para essa fonte energética são o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) em 2004 e do novo sistema de leilão em 2009 (Adami; Antunes; Dawson, 2022).
No entanto, comunidades onde os parques eólicos têm se instalado sofrem impactos e externalidades negativos decorrentes dessa produção, que incidem sobre diversas dimensões e sistemas produtivos locais, como no meio biofísico, social, econômico etc. O estudo de Da Silva (2023) com pequenos agricultores no estado do Pernambuco aponta processos de desterritorialização, êxodo rural e redução de amenidades ambientais na comunidade decorrente da implantação de aerogeradores.
No estado da Bahia foram verificados impactos como: “práticas socialmente injustas como invasão de propriedades, apropriação de territórios tradicionais, desmatamentos desenfreados, perfuração de poços (estagnação do lençol freático), comprometimento de corpos hídricos, contratos questionáveis, problemas de saúde respiratórios, neurológicos, auditivos”, processos erosivos, dentre outros (Sales; Sales, 2023, p. 24). Após estudo em João Câmara, Rio Grande do Norte, Hofstaeter (2016) indica que os parques expuseram a população a vulnerabilidade socioambiental e destaca a necessidade de uma gestão compartilhada, transparente e participativa e com maior compromisso com a justiça socioambiental.
Esses estudos revelam potencial desequilíbrio entre esse sistema produtivo (eólica), pautado por uma lógica de gestão produtivista, e as localidades que tipicamente já apresentam fragilidade socioambiental. Conforme alguns críticos, parte da problemática é atribuída ao fato de o sistema produtivo energético (seja tradicional ou renovável) ser fruto de uma demanda capitalista e, portanto, sem o real interesse na sustentabilidade socioambiental de suas atividades, como argumenta Barreto (2021) ao alertar que os ganhos com a energia limpa não acompanham o próprio aumento de demanda energética e Dantas (2020) que comenta como a maioria das empresas eólicas são privadas e estrangeiras com objetivo primordial de acumulação de capital.
O Nordeste brasileiro, onde se encontra a maior parte dos projetos, se caracteriza como um componente geoeconômico com peculiaridades e práticas próprias da região (Macedo, 2014). Por isso, a gestão desse território deve ser acompanhada pelo Estado e pela participação popular, pois é a partir da ordenação espaço-temporal que o capital encontra formas de acumulação, sendo essencial a população poder decidir sobre as estruturas socioeconômicas (Sales; Sales, 2023).
Uma perspectiva emergente de gestão do território compatível com um desenvolvimento harmonioso do território é a Gestão Social, que reflete “práticas gestionárias participativas, horizontais, dialógicas e democráticas” (Araújo, 2014, p. 88). Cançado, Pereira e Tenório (2015) propõem categorizar a Gestão Social em três dimensões principais: Interesse Bem Definido, Esfera Pública e Emancipação. O Interesse Bem Definido se refere ao reconhecimento do indivíduo de que sua atuação individual está conectada ao coletivo, ou seja, de que sua busca por bem-estar pessoal está condicionada ao bem-estar coletivo. Nesta dimensão estão as categorias Solidariedade e Sustentabilidade. A primeira por estar ligada a mutualidade de interesses e a segunda por ser também pano de fundo para o bem-estar coletivo e, até mesmo, objetivo da solidariedade, se refere à capacidade de continuidade, permanência e sustentabilidade, não só do meio ambiente (Cançado; Pereira; Tenório, 2015).
Na Esfera Pública estão a Democracia Deliberativa (referente a processos participativos de tomada de decisão), a Racionalidade (a gestão social demanda uma racionalidade substantiva), a Dialogicidade (capacidade de comunicação) e a Intersubjetividade (capacidade de compreensão do que se dialoga). Por fim, a Emancipação (referente à ação autônoma e livre de opressões) (Cançado; Pereira; Tenório, 2015).
A Gestão Social, a partir dos princípios e práticas nos quais se baseia, se mostra como um caminho para a superação de desequilíbrios na ocupação do sistema de produção de energia eólica nos territórios. Os impactos e externalidades poderiam ser minimizados caso a lógica de funcionamento da energia eólica incorporasse princípios da Gestão Social, superando problemas sistêmicos da lógica produtiva-capitalista. Tal mudança de paradigma pode repercutir benefícios para a sociedade como um todo, visto que a produção interfere no meio de modo sistêmico.
ADAMI, Vivian Sebben; ANTUNES JR, José Antônio Valle; DAWSON JR, Guillermo Enrique. Public policies and their influence on the development of the wind industry: comparisons between Brazil and China. Clean Technologies and Environmental Policy, v. 24, n. 8, p. 2621-2638, 2022.
ARAÚJO, E. T. de. Gestão social. In: BOULLOSA, Rosana de Freitas (org.). Dicionário para a formação em gestão social. Salvador: CIAGS/UFBA, 2014. p. 85-90.
BARRETO, Eduardo Sá. Crise climática e o Green New Deal: uma primeira aproximação crítica. Revista Fim do Mundo, n. 02, p. 75-91, 2020.
CANÇADO, Airton Cardoso; PEREIRA, José Roberto; TENÓRIO, Fernando Guilherme. Fundamentos teóricos da gestão social. DRd-Desenvolvimento Regional em debate, v. 5, n. 1, p. 4-19, 2015.
DANTAS, José Carlos. A geografia dos conflitos territoriais no semiárido brasileiro. 2021.
DA SILVA, Tarcísio Augusto Alves. Percepção de risco, produção de energia eólica e pequenos agricultores do agreste pernambucano. Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, v. 11, n. 1, p. 80-96, 2023.
HOFSTAETTER, Moema. Energia eólica: entre ventos, impactos e vulnerabilidades socioambientais no Rio Grande do Norte. 2016. Dissertação de Mestrado. Brasil.
MACEDO, Hypérides Pereira de. Uma nova agenda para o semiárido do Nordeste. In: GUIMARÃES, Paulo Ferraz. et al (Org.). Um olhar territorial para o desenvolvimento: Nordeste. Rio de Janeiro: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, 2014. p. [388]-418.
SALES, Ricélia Maria Marinho; SALES, Luís Gustavo de Lima. Energia Renovável Centralizada e Minerais de Transição Energética: paradoxos entre os negócios de energia e os direitos humanos de povos e comunidades tradicionais do brasil. Campina Grande: Eduepb, 2023. 168 p.